Coitadinho de mim

Todos nós, sem excepção, aprendemos na infância a ser coitadinhos. 
Os adultos à nossa volta mostraram-nos, de maneiras mais ou menos subtis, que não somos merecedores de amor, ou não somos importantes, ou não prestamos, ou não somos capazes, ou somos estúpidos. Como isto foi incutido à criança ainda antes desta ter desenvolvido filtros que lhe permitissem discernir o que lhe era dito ou feito, cresceu a acreditar num destes temas.

Qual é o tema da sua história de coitadinho? Se os seus relacionamentos costumam ser um fracasso, aprendeu que não é merecedor de ser amado. Se tem problemas no trabalho, aprendeu que não presta ou não é capaz. Se não é capaz de ser ouvido pelos outros, aprendeu que não é importante. E se não é capaz de se respeitar, permitindo que outros abusem de si de muitas maneiras, aprendeu que não é especial.

É isto o que se esconde na nossa sombra. Uma história de coitadinho.
 
Não quero aqui culpabilizar os nossos pais: eles fizeram o melhor que sabiam. Eles aprenderam a amar com os pais deles, que por sua vez aprenderam com os seus pais. 
Como é que eu sei que estou dentro da minha história que afirma ser eu um coitadinho? Prestando atenção ás minhas emoções. Sentimentos de ansiedade, tristeza, revolta, ira, mágoa, desalento, insatisfação, cansaço, desprezo, angústia, preocupação, são indicadores precisos que me informam estar a viver dentro de uma história que afirma peremptoriamente: “coitadinho de mim! Se ao menos...”

É importante não esquecer que é ok ter estes sentimentos. É perfeitamente normal, e saudável, sentir tristeza quando uma relação chega ao fim ou um ente querido parte. É perfeitamente normal sentir revolta quando assistimos a actos de injustiça. O problema é quando nos mantemos presos a esses sentimentos. Quando meses depois de uma separação ainda sentimos mágoa, ou revolta, ou ansiedade. Quando um ano depois de um colega de trabalho nos ter criticado ainda recordamos as palavras. Isto é viver dentro de uma história de coitadinho.
Esta história é sempre limitadora. Impede-nos de abraçar a totalidade que somos. Leva-nos a julgar os outros e a definir o que é certo e errado, de acordo com os nossos padrões.
Um dos aspectos mais importantes desta história de coitadinho é a auto-sabotagem que praticamos diariamente. Quando sabemos que podíamos ser mais e fazer mais, mas em vez disso dedicamo-nos a desculpar-nos e justificar-nos. Ou quando nos dedicamos ás queixinhas. A pessoa queixinhas vive dentro de uma história muito limitadora que afirma que não tem poder para mudar, não é capaz de auto-controle e, sobretudo, sabe que o mundo é um lugar mau cheio de pessoas más.
Quando nos dedicamos a apontar o dedo, a desvalorizar outros, a reagir de maneira inapropriada. Estamos dentro da nossa história. Quando nos comparamos aos demais. Quando nos preocupamos com coisas que podem ou não acontecer.
Gostaria de lhe pedir que se permitisse reflectir nisto:
No mundo há pessoas boas e pessoas más. No mundo há abundância e também pobreza. No mundo há justiça e injustiça. O mundo é um lugar dualista: nada existe sem o seu oposto. Noite precisa do dia da mesma forma que o quente precisa do frio. Alto e baixo, frente e verso, bom e mau. 
E saiba ainda isto: as pessoas mais “certinhas” são as que escondem maior escuridão. As pessoas mais moralistas são as que escondem mais falsidade. As pessoas que criticam continuamente os outros vivem num desassossego permanente. 
Sabe porque motivo algumas pessoas gostam de ver os noticiários na televisão? Dizem que é para se manterem informados. Mentira. Vêem os noticiários para se comparar e apaziguar um sentimento de culpa que os invade. O facto de eu desperdiçar tempo a visitar sites pornográficos na net é irrelevante comparado com o sujeito que foi preso ontem por ter violado uma mulher. O facto de eu dedicar tempo a falar mal de um colega não é nada comparado com o político que insulta outro em plena Assembleia da República. O eu tirar canetas ou papel do escritório não representa nada em relação ao desgraçado que foi apanhado a roubar um banco. As minhas vergonhas não são nada comparadas com aquilo que vejo nos noticiários!
Só que isto não é verdade. Existe em nós um circuito neuronal de integridade. E sempre que atentamos contra a nossa integridade, criticando e julgando outros ou tirando aquilo que não é nosso, ou roubando tempo aos outros, este circuito de integridade entra em conflito. E pagamos caro por isso. Inconscientemente iremos procurar formas de nos punir. Através de relacionamentos ocos, de perdas financeiras, doenças, etc.
Como podemos sair das nossas histórias de coitadinhos? Regras básicas:
-       Respeitar-me em tudo o que faço;
-       Respeitar os outros (significa não fazer juízos de valor sobre outros);
-       Ter a humildade de calçar os sapatos do outro (daquele a quem apontamos o dedo);
-       Parar de ver a maldade alheia e observar as maneiras em que sou mau para comigo;
-       Sorrir, independentemente do que sucede à minha volta.

A nossa incongruência reside no facto de apesar de estarmos a viver numa história de coitadinho, comportamo-nos como se fossemos o centro do universo. Convençamo-nos de uma vez por todas que o mundo continuará a movimentar-se mesmo depois de morrermos. O mundo não pára só porque nós estamos tristes ou ansiosos ou doentes. Nada é assim tão importante. Literalmente. Mas comportamo-nos como se a nossa vida dependesse de termos razão o tempo inteiro, quando em realidade raras vezes a temos.
Temos ainda que assumir que a única pessoa que podemos controlar e mudar somos nós mesmos. Nunca mudaremos quem quer que seja com uma critica. Nunca mudaremos quem quer que seja só porque lhe dizemos umas “verdades” (regra geral a nossa verdade pessoal). 
Se temos problemas com alguém, a melhor solução é perguntar-nos: o que esta pessoa me está a pedir? E dar o que a outra pessoa pede.

Vejo isto com muitos professores. Querem alunos bem comportados e cumpridores. Mas os próprios professores comportam-se pessimamente em relação a eles próprios. Desrespeitam-se continuamente. São incongruentes, julgam e criticam sem pensar duas vezes. Nas suas cabeças há um caos aterrador de pensamentos carregados de ira, revolta, mágoa, desprezo. E depois querem ter razão. Acredito que os professores com alunos “problemáticos” nada mais fazem do que projectar o seu “problematismo” sobre os alunos. E enquanto não aceitarem que os alunos apenas lhes mostram o que andam a fazer a eles mesmos, nunca terão alunos como desejam.
 

É anedótico ver um professor a exigir respeito a um aluno. Fá-lo com prepotência e uma autoridade que não é reconhecida. Eu jamais conseguirei que outros me respeitem enquanto eu não me respeitar a mim mesmo primeiro. Se quero uma sala de aula atenta tenho que primeiro procurar o silêncio e calma dentro de mim. Pedia aos professores que da próxima vez que estiverem frente a uma turma barulhenta se observem a eles mesmos. Observem o ruído mental nas suas cabeças.

Este é um dos motivos porque temos cada vez mais crianças e adolescentes rebeldes, maus, irados. Eles estão a mostrar-nos a revolta que vai dentro de nós, a ira que sentimos pelas injustiças cometidas contra nós por governantes prepotentes. E nada fazemos em relação a esta situação, excepto criticar. E os adolescentes mostram-nos a nossa raiva. Claro que isto é apenas a minha opinião, sem qualquer valor para além do que decidir atribuir-lhe.

Seria arrogância da minha parte acreditar que sou capaz de mudar quem quer que seja. Nunca irá acontecer. Mas posso mudar-me a mim. O que estará a pedir um aluno irrequieto ou mal-educado? “Aceita-me como sou!”. Aceita-me por ser uma criança que se sente abandonada, julgada, criticada. Uma criança cujos pais não sabem dar amor. Uma criança cuja escola serve para simplesmente julgar no final de cada período. Os maus alunos estão a pedir aceitação, amor incondicional.
 
Se se permitir parar de apontar o dedo e calçar os sapatos de outra pessoa irá descobrir que a pandemia que assola a humanidade é o auto-ódio, e o antídoto é o amor incondicional.

Tenho uma amiga, professora, que nunca teve problemas com os seus alunos. Sempre que lhe aparece um aluno “mau” ela escreve-lhe uma pequena carta. Basicamente diz-lhe que gosta dele, independentemente de ele ser bom ou mau, estudioso ou preguiçoso. Diz-lhe ainda que se ele alguma vez quiser conversar em privado ela está disponível. Ela sabe que o “mau” aluno apenas quer ser aceite, com todos os seus defeitos, vergonhas, culpas e medos.

Alguma vez pensou porque motivo qualquer pessoa se rende ao sorriso de um bebé ou ao olhar de um cachorrinho? Porque nesse olhar não há qualquer juízo ou critica. O bebé e o cachorrinho, através do olhar, dizem-nos que é ok sermos quem somos.

Continuando com a nossa história de coitadinho:
Sabemos que estamos fora da nossa história quando nos sentimos alegres, de bem com o mundo, satisfeitos com o nosso trabalho, plenos, cheios de energia, com esperança num futuro melhor, animados, sem preocupações e tranquilos. Provavelmente conseguimos permanecer fora das nossas histórias de coitadinhos durante alguns minutos por dia.

O que pode fazer para sair da sua história:
Comece por observar os seus comportamentos, atitudes e pensamentos. Dentro das nossas histórias lutamos contra a realidade. Observamos algo e decidimos que não deveria ser assim. E lutamos contra aquilo que é. Um exemplo simples: vemos na rua alguém a deitar lixo para o chão e decidimos que é errado. Errado para quem? Definitivamente que não é errado para a pessoa que deita o lixo para o chão. Em vez de criticarmos esta atitude, aceitamos aquilo que é e fazemos o que podemos. Podemos falar com a pessoa, ou, mais simples ainda, pegar nesse lixo e deitar num recipiente apropriado. Sem conflito com a realidade. Isto não significa ser escravo dos outros nem andar a fazer o trabalho dos outros. Este tipo de pensamento rouba-nos muita energia. 

Quando vejo alguém a deitar lixo ao chão fico grato pelo que vejo. Penso sempre “obrigado por me mostrares que ainda ando a atirar com lixo para cima de outros”. Depois observo-me, tento descobrir que lixo ainda carrego comigo. Talvez um pensamento que me diz que não sou capaz. Ou uma critica feroz contra um amigo. O pior lixo não é o que vemos nas ruas, é o lixo nas nossas mentes. Aqueles pensamentos que afirmam milhares de vezes ao dia que o mundo é um lugar perigoso, que as pessoas são más, que eu não mereço ser amado, que o meu corpo está mal. Isto é o verdadeiro lixo que polui a vida de cada um de nós. E enquanto não reciclarmos o lixo das nossas mentes será impossível eliminar o lixo que se acumula sobre este nosso glorioso planeta.

Dentro das nossas histórias de coitadinho temos sempre razão, estamos certos e os outros são os maus da fita. Fora das nossas histórias sabemos que tudo é como deveria ser (pelo simples facto de ser assim). Fora das nossas histórias não precisamos que os outros mudem: mudamos nós. Fora das nossas histórias não levamos o comportamento dos outros a peito. Sabemos que cada um está a fazer o melhor que é capaz. E esse melhor pode não ser o melhor que nós queremos, mas nós não somos os directores gerais do universo nem os proprietários do planeta.

Em vez de criticar as pessoas que abandonam animais, porque não começar a criar um grupo de pessoas que possam acolher esses animais? Em vez de criticar o colega preguiçoso porque não começar a ver de que forma poderíamos ser nós no seu lugar, se tivéssemos a vida que ele tem? Em vez de esperar que os alunos me respeitem, porque não começar a respeitar-me a mim mesmo?
 

Tive uma professora, que ainda hoje admiro, que parecia estar sempre bem. Mesmo quando o marido faleceu de cancro ou o filho foi atropelado e ficou em coma. Dizia-nos que tudo o que nos acontece são lições para aprendermos a ser o melhor que podemos ser. E dizia ainda outra coisa: num grupo, a pessoa que fala mais alto raramente tem razão.

É uma opção que cada um pode fazer, constantemente. Prefere ver as nuvens no céu ou o lixo num passeio? Prefere sentir compaixão pela pessoa que sofre e com o seu sofrimento trata mal os outros, ou escolhe antes criticar essa pessoa?

A realidade é que cada ser humano está a viver dentro de uma história limitadora. E eu não tenho o direito de julgar as histórias dos outros. Mas posso olhar para a minha história e começar a criar uma nova história. Uma história em que sou o melhor que sou capaz de ser. Uma história onde me amo e aceito cada desafio da vida como uma lição. Uma história em que paro a revolta em mim e amo incondicionalmente. Eu não tenho nem mais nem menos direitos que os outros. E, sobretudo, não tenho o direito de impingir a minha “verdade” sobre quem quer que seja.

E esta é a minha verdade apenas. Ninguém tem que a aceitar. Ninguém tem que concordar com o que digo. Ninguém tem que refutar nada do que digo. Apenas eu tenho o poder para o fazer. E no fim do dia apenas tenho que me sentir bem comigo por saber que fiz o meu melhor. Chegar ao fim do dia e acariciar-me como se acaricia uma criança de dois anos, com muito carinho e amor, sem julgar.
  

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