Uma história para crianças (e adultos também!)

Acredito que todas as pessoas são boas. Todas possuem um coração nobre. Uma muito, muito, pequena minoria nasce sem consciência, mas é a excepção quase insignificante. Porque acredito nisto, hoje escolhi uma história que a Debbie Ford conta no seu livro “Quando as pessoas boas fazem coisas más” (Editora Estrela Polar).

Há uma história antiga dos índios Cherokee sobre o chefe de uma grande aldeia. Um dia o chefe decide que chegou a altura de ensinar ao seu neto favorito os factos da vida. Leva-o para a floresta, fá-lo sentar sob uma velha árvore e explica: “Filho, há uma luta em curso dentro da mente e do coração de todo o ser humano que hoje está vivo. Apesar de eu ser um velho chefe sábio, o líder do nosso povo, essa mesma luta acontece dentro de mim. Se não souberes que a batalha está em curso, ela enlouquecer-te-á. Nunca saberás em que direcção ir. Na vida, umas vezes ganharás e depois, sem perceberes porquê, de repente sentir-te-ás perdido, confuso e receoso e podes perder tudo o que tanto te esforçaste por adquirir. Pensarás muitas vezes que estás a fazer o que está certo para depois descobrires que estavas a fazer as escolhas erradas. Se não compreenderes as forças do bem e do mal, a vida individual e a vida colectiva, o Verdadeiro Eu e o Falso Eu, viverás sempre uma vida de grande agitação.”

“É como se houvesse dois grandes lobos dentro de mim: um é branco e outro é negro. O branco é bom, generoso e não faz mal. Vive em harmonia com tudo o que o rodeia e não se ofende quando não há intenção de ofender. O lobo bom, estabilizado e forte na compreensão de quem é e do que é capaz, só luta quando é acertado fazê-lo e quando tem de o fazer para se proteger a si ou à sua família e, mesmo assim, fá-lo da maneira correcta. Cuida de todos os outros lobos da sua alcateia e nunca se desvia da sua natureza.”

“Mas também há um lobo negro que vive dentro de mim, e este lobo é muito diferente. É ruidoso, colérico, descontente, invejoso e tem medo. A mínima coisa provoca-lhe um acesso de raiva. Luta com toda a gente, o tempo todo, por razão nenhuma. Não consegue pensar claramente porque a sua ganância por mais e a sua raiva e ódio são imensos. Mas é uma raiva impotente, filho, pois a sua raiva não muda nada. Arranja sarilhos onde quer que vá, por isso encontra-os facilmente. Não confia em ninguém, portanto, não tem amigos verdadeiros.”

O velho chefe senta-se em silêncio durante alguns minutos, deixando a história dos dois lobos penetrar na mente do seu jovem neto. Depois, inclina-se lentamente, olha o neto nos olhos e confessa: “Por vezes, é difícil viver com estes dois lobos dentro de mim, pois ambos lutam arduamente por dominar o meu espírito.”

Atraído pelo relato daquela grande batalha interior do seu antepassado, o rapaz puxa pela tanga do avô e pergunta ansiosamente: “Qual dos lobos ganha, avô?” E com um sorriso conhecedor e uma voz forte e firme, o chefe diz: “Ganham ambos, filho. Se eu optar por alimentar apenas o lobo branco, o lobo negro estará em todas as esquinas à espera de ver se estou em desequilíbrio ou demasiado ocupado para prestar atenção a uma das minhas responsabilidades e atacará o lobo branco, causando muitos problemas a mim e à nossa tribo. Estará sempre zangado e a lutar por obter a atenção porque anseia. Mas, se eu der alguma atenção ao lobo negro porque compreendo a sua natureza, se o reconhecer como força poderosa que é e lhe fizer sentir que o respeito pela sua personalidade e o utilizar para me ajudar, se nós, enquanto tribo, alguma vez nos encontrarmos numa situação difícil, ele ficará feliz, o lobo branco ficará feliz e ganham ambos. Todos nós ganhamos.”

Confuso, o rapaz pergunta: “Não percebo, avô. Como podem ganhar ambos os lobos?” O chefe prossegue: “Sabes, filho, o lobo negro tem muitas qualidades importantes de que posso precisar, dependendo do que nos surge no caminho. É feroz, determinado e não cede em nenhum momento. É inteligente, esperto e capaz dos pensamentos e estratégias mais tortuosos, que são importantes em tempo de guerra. Tem muitos sentidos apurados e intensificados que só alguém que veja através dos olhos das trevas consegue apreciar. No meio de um ataque, pode ser o nosso maior aliado.” O chefe tira então uns bifes frios da sua bolsa e coloca-os no chão, um à sua esquerda e outro à sua direita. Aponta para os bifes e diz: “Aqui à minha esquerda está a comida para o lobo branco e à direita a comida para o lobo negro. Se decidir alimentar ambos, deixarão de lutar pela minha atenção e posso utilizar cada um deles conforme necessário. E, não havendo guerra entre eles, consigo ouvir a voz do meu conhecimento mais profundo e escolher qual deles me pode ajudar melhor em cada situação. Se a tua avó quiser comida para fazer uma refeição especial e eu não tiver cuidado disso como devia, posso pedir ao lobo branco que me empreste o seu encanto para consolar o lobo negro dela, que está com fome e zangado. O lobo branco sabe sempre o que dizer e vai ajudar-me a ser mais sensível às necessidades dela. Sabes, filho, se compreenderes que há duas forças principais que existem dentro de ti e lhes manifestares o mesmo respeito, ambas ganharão e haverá paz. A Paz, meu filho, é a missão do Cherokee – o propósito fundamental da vida. Um homem que tem paz no seu íntimo tem tudo. Um homem despedaçado pela guerra no seu íntimo não tem nada. Tu és um jovem que tem que escolher como vais interagir com as forças antagónicas que vivem dentro de ti. O que decidires determinará a qualidade do resto da tua vida. E, quando um dos lobos precisa de atenção especial, o que acontecerá por vezes, não tens de ter vergonha: basta admiti-lo perante os mais velhos e obteres a ajuda de que necessitas. Depois de divulgado, outros que travaram a mesma batalha podem oferecer-te a sua sabedoria.”

Esta história simples e pungente explica a difícil situação da experiência humana. Cada um de nós está empenhado numa luta contínua em que as forças da luz e da sombra se digladiam pela nossa atenção e obediência. Tanto a luz como a sombra residem dentro de nós ao mesmo tempo. A verdade seja dita, há uma alcateia inteira à solta dentro de nós – o lobo carinhos, o lobo de bom coração, o lobo inteligente, o lobo sensível, o lobo forte, o lobo altruísta, o lobo sincero e o lobo criativo. Juntamente com estes aspectos positivos existe o lobo insatisfeito, o lobo ingrato, o lobo com direitos, o lobo maldoso, o lobo egoísta, o lobo vergonhoso, o lobo mentiroso e o lobo destrutivo. Todos os dias temos oportunidade de reconhecer todos estes lobos, todas estas partes de nós, e podemos escolher como nos relacionamos com cada uma delas. Faremos o nosso juízo e fingiremos que algumas não existem, ou assumiremos a propriedade da alcateia toda?

Por que será que sentimos a necessidade de negar a alcateia que vive dentro de nós? A resposta é fácil. Ou pensamos que eles não existem ou que não deviam existir. Tememos que, se admitirmos todos os nossos “eus” diferentes que ocupam o espaço da nossa psique, sejamos rotulados como esquisitos, diferentes, defeituosos ou psicologicamente fragmentados. Pensamos que devíamos ser boas pessoas “normais” que são habitadas por uma só pessoa. Mas há muitos “eus” e a recusa de os aceitarmos é um erro muito grave – que nos levará a cometer actos estúpidos e imprudentes de auto-sabotagem.

Eis o grande segredo: o nosso “Eu” contém muitos “eus”, porque dentro de cada um de nós existem todas as qualidades possíveis. Não há nada que possamos ver, nem nada que possamos julgar, que não sejamos. Somos todos a luz e a sombra, o santo e o pecador, o atraente e o desagradável. Somos todos bondosos e calorosos bem como frios e mesquinhos. Dentro de si e dentro de mim residem todas as qualidades conhecidas da humanidade. Embora possamos não ter consciência de todas as qualidades que possuímos, estão dormentes dentro de nós e podem revelar-se a qualquer momento, em qualquer lugar. Compreendê-lo permite-nos perceber a razão pela qual todos nós, “pessoas boas”, somos capazes de fazer coisas tão más e, mais importante, a razão por que por vezes somos os nossos piores inimigos.

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