Uma história para adormecer

Havia na Índia, há centenas de anos atrás, um príncipe muito rico. Tinha os melhores ministros a governar o seu reino e, por isso, nunca tinha que se preocupar com os súbditos. Os ministros encarregavam-se de governar enquanto ele se dedicava aos seus prazeres. Passeava, caçava, fazia enormes festas e tinha várias amantes. Vivia feliz sabendo que o seu povo estava bem entregue nas mãos dos seus ministros.

Um dia acordou pela manhã e reparou que tinha na sua coxa direita duas pequenas manchas vermelhas que o incomodavam. Acreditando que tinha sido picado por pulgas, mandou queimar toda a roupa da sua cama e não pensou mais no assunto. Foi caçar com alguns dos seus guardas e ao fim do dia deliciou-se com um enorme banquete. Quando se foi deitar reparou que as duas manchas vermelhas eram agora dois enormes olhos que pareciam cheios de raiva. O príncipe ficou preocupado e mandou chamar os seus médicos.

Os médicos aplicaram-lhe óleos e fizeram massagens. As duas manchas pareceram diminuir de tamanho e o príncipe adormeceu sem mais pensar no assunto. Quando acordou no dia seguinte já as duas manchas pareciam novamente dois olhos enraivecidos. Mas a sua coxa estava pior! Agora aparecia também uma protuberância que se assemelhava a um nariz e uma boca retorcida. Cheio de dores, o príncipe mandou chamar novamente os seus médicos. Estava aterrorizado com o aspecto daquela ferida na coxa. Tinha tons avermelhados e arroxeados e expelia pus. Os médicos decidiram cortar aquela ferida horrorosa.

O príncipe passou alguns dias na cama, a recuperar da operação que lhe tinha salvado a perna. Ficou aliviado quando voltou novamente a viver a vida prazenteira que sempre tinha vivido. Voltou a caçar, a passear, a divertir-se com enormes banquetes e festas intermináveis.

Passaram-se alguns meses. Um dia o príncipe acordou cheio de dores na coxa direita. A ferida tinha voltado, e desta vez com muita mais ferocidade. Dois olhos enormes esbugalhados e enraivecidos olhavam o príncipe com desdém. Do nariz ensanguentado até aos lábios roxos saía um liquido viscoso e fedorento. Desesperado e cheio de dores, o príncipe gritou pelos seus médicos que o acudissem. Mas os médicos não sabiam o que fazer.

Foi então que um dos seus servos mais chegado lhe falou na fonte de Kwan-Yin. Uma fonte milagrosa abençoada pela própria deusa da compaixão. Dizia-se que todos os que se banham-se nas suas águas eram curados. Sem mais demoras o príncipe pegou nos seus guardas e dirigiu-se até à fonte. A cara monstruosa que crescia na sua perna tornava-se mais e mais irritada e agressiva.

Depois de algumas horas a cavalgar chegaram próximo da fonte. Uma velha sentada à beira do caminho avisou o príncipe de que apenas a pessoa que procurava a cura de Kwan-Yin poderia avançar a partir daquele ponto. O príncipe deixou os guardas e o seu cavalo e, a muito custo, dirigiu-se até à fonte.

Sentou-se à beira da fonte e começou a deitar água sobre a enorme ferida que odiava, para que esta desaparecesse para sempre. Foi então que a ferida lhe falou: “porque tentas destruir-me se todo este tempo e nunca olhaste para mim, nem quiseste ouvir uma única palavra que eu te dizia? Será que não és capaz de me reconhecer?”

O príncipe olhou para a ferida com mais atenção e foi então que viu uma cópia distorcida da sua própria face. As suas lágrimas de dor começaram a cair sobre a ferida. À medida que as lágrimas caiam sobre os olhos na sua coxa direita, estes começaram a transformar-se nos olhos da própria Kwan-Yin, a qual lhe diz: “Nunca tiveste um coração compassivo. Nunca tiveste um acto de benevolência. De que outra maneira poderia eu chamar-te para a tua verdadeira natureza?”

O príncipe e a deusa passam horas a conversar sobre o segredo do seu sofrimento, o qual tinha surgido muitos anos antes da ferida na coxa. Quando por fim nasceu o novo dia, a ferida do príncipe estava completamente curada.

Talvez o nosso próprio sofrimento interior seja a causa das nossas doenças. As nossas vergonhas e arrependimentos secretos se manifestem no corpo fisicamente, nos nossos músculos e ossos, nas artérias e nervos. Talvez até dentro das nossas pequenas células, acorrentados no interior por memórias de eventos que ocorreram e não deveriam ter ocorrido. E aí permanecem, repousando num silêncio mortal, escorraçados para a escuridão. Para surgir anos mais tarde como um tumor pernicioso, uma artéria obstruída, uma onda de ansiedade envolvente, ou uma dor misteriosa e sem diagnóstico a que chamamos dor crónica. É no sofrimento dos nossos sintomas que muitas vezes a sombra se materializa.

A nossa sombra emocional – o pessimismo, a depressão, o cinismo, a agressividade – possui um equivalente físico. Embora um não cause necessariamente o surgimento do outro de uma forma simples e linear, parece óbvio que partilham uma evolução em que as fronteiras de um se cruzam com o outro. Por este motivo é possível fazer trabalho da sombra através do corpo ou da mente. Idealmente um bom trabalho da sombra envolve-nos a nível mental, emocional e físico.

A pergunta que lhe deixo para reflectir: qual é a sua vergonha? Qual é o segredo que tem medo que outros descubram sobre si? E o que pode fazer para expor o seu segredo ainda hoje?

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