As gavetas das experiências





“Não querer o que está a acontecer é dar mais poder ao que está a acontecer.”

Desde muito cedo ensinam-nos a catalogar todas as experiências da vida. Somos bons a aprender a fazer isto. E no final todas as experiências se resumem a seis rótulos. Boas e más, certas e erradas, bonitas e feias.

É assim que nos limitamos e vivemos uma vida a lutar. Lutamos para ter o bom, certo e bonito. Lutamos para não ter o mau, errado e feio. Um verdadeiro inferno, Porque estamos sempre a lutar.

Observação: perante uma situação que consideres errada ou má pergunta-te “o que há de bom para mim aqui?” – deixa que a resposta surja, sem forçar.

Enquanto vivermos a classificar as situações desta forma é impossível ter paz. Olhamos para eventos do passado e dizemos que foram maus. E sofremos. Imaginamos algo no futuro que pode correr mal. E sofremos. Ou recordamos eventos do passado que classificamos como bons e sofremos porque já não estão aqui.

Estar presente no momento, sem estes rótulos, é muito difícil. Porque sem estes rótulos o ego não existe enquanto ditador da vida. O ego classifica, descreve, interpreta. É útil. O drama acontece quando tudo é experienciado a partir deste ego, desta parte de mim que se sente incompleta e necessitada.

Isto não é bom nem mau. Pode inclusive ser útil.

O momento presente não é aquilo que acontece à tua volta. O momento presente inclui-te a ti. Neste momento observa as sensações nos teus pés, nas mãos, os sons à tua volta, as cores, os movimentos. Sem classificar como bom ou mau. Se conseguires ficar neste estado algum tempo começarás a ter um vislumbre da vida tal como se apresenta. Poderás notar breves momentos sem pensamento. Talvez seja mais fácil se focares a tua atenção na respiração, no ar que entra e sai.

Para sair deste ciclo podes começar a procurar algo que funcione a teu favor em cada situação dolorosa do passado. A pergunta que te podes fazer é esta: de que forma beneficiei devido a esta situação? Ou "O que poderia ter aprendido?"

Quando tinha quinze anos fugi de casa. Vivi na rua e a dormir em bancos de jardim. De que forma me foi benéfica esta experiência? Aprendi que preciso de muito pouco para viver. Aprendi ainda que a vida toma conta de mim quando eu não o faço. E anos mais tarde, em conversa com um adolescente que fugia de casa pude ser-lhe útil. Falei-lhe da minha experiência, que parece ter sido suficiente para ele mudar de ideia e regressar a casa. Não lhe disse que estava errado ou que era mau o que ele estava a fazer. Contei-lhe a minha aventura. Isso foi tudo.

Quando morreu uma muito querida amiga beneficiei da presença no momento. Descobri ainda que as pessoas não morrem, apenas os corpos. Esta querida amiga continua sempre viva onde sempre viveu: na minha mente, como uma sucessão de histórias.

Quais os benefícios de passar por situações de privação, de violência física ou verbal, de escassez? Poderia aprender que nem sequer este corpo é meu. Aprender que todo o sofrimento é baseado numa história acerca do que já passou, ou que ainda está para acontecer. Mesmo a dor física é uma experiência que está sempre a passar. Sempre no passado. Consegues sentir a dor de há três segundos atrás?

Consegues ver beleza numa rua com lixo? A perfeição com que o lixo se espalha pela rua? E se te incomoda, com certeza que podes agarrar numa vassoura e começar a varrer a rua. Ninguém te irá impedir de o fazer.

Experimentação: tenta colocar-te no lugar da pessoa que te causa stress. Como será viver a vida dessa pessoa? Que situações terá para ter o comportamento que tem?
Decidimos que há pessoas boas e más. E só queremos a companhia das boas, obviamente. Até ao dia em que as pessoas boas façam ou digam algo que consideramos mau. E assim passamos uma vida a evitar os outros. E se as pessoas más fossem apenas pessoas confusas? E se alguém te ameaçar, claro que é muito mais saudável para ti afastar-te.

Este método de rotular a vida impede-nos de experienciar o amor por todos. Dizemos que amamos outro, e em realidade apenas gostamos do outro porque o consideramos bom. O dia que o outro se comportar de uma maneira que consideramos má o amor sai porta fora. Não conseguimos um espaço para a compaixão, limitamo-nos a acusar o outro por ser mau, tal como os adultos à nossa volta nos fizeram quando éramos crianças.

Assim nasce a violência. Por detrás das histórias de violência doméstica há uma pessoa incapaz de dizer não. Uma pessoa com medo da solidão ou do que os outros possam pensar. Porque tomar uma atitude assertiva pode ser mau ou errado ou feio.

A violência é um estado de confusão total. Não é bom nem mau. É o que é. E ensinamos os nossos filhos este estado de confusão que gera a violência. Amuamos, gritamos, castigamos, ameaçamos. Fomentadores do medo, vergonha e culpa é o que somos muitas vezes.

E não há pais bons ou maus. Há os pais que há. Se acreditas que os teus pais foram maus, poderias parar de te magoar e aprender o que tinham para te ensinar. Talvez a lição mais importante que um progenitor violento pode ensinar é precisamente isto: a violência não funciona. Poderias parar a violência de ti para ti? Como te violentas no dia-a-dia? Como te deitas abaixo? Quantas vezes fazes algo apenas para agradar? Muita violência. E como tratas tu o pai ou mãe que foram violentos? Consegues mostrar-lhes que a paz funciona melhor, ou optas por os acusar de terem sido maus pais?

Continuando com este hábito de rotular a vida. Aquilo que é mau para uma minhoca é muito bom para o pássaro que a come. E aquilo que é mau para o pássaro é muito bom para o gato que o come. E no fim o último a rir é novamente a minhoca que come o gato em decomposição. Um ciclo completo.

Apenas do ponto de vista do individuo, microcósmico, é que a vida pode ser interpretada como boa ou má. Do ponto de vista macrocósmico, a vida simplesmente vive-se. Tudo a acontecer agora. Agora. Agora. E quando interpretas o que está a acontecer agora, o agora já mudou. É sempre uma história do passado.

Podes começar a praticar a inexistência do bom e mau, bonito e feio, certo e errado, a partir de agora. Observa o que acontece e diz a ti mesmo que é ok estar a acontecer o que está a acontecer. Mesmo que não gostes do que está a acontecer, é ok não gostar do que está a acontecer. E depois de afirmares que é ok, pergunta-te o que é para fazer a seguir. Mesmo que o que esteja a acontecer agora seja alguém dar-te uma bofetada, é ok. E o que é para fazer a seguir é simples: deixa essa pessoa em paz, afasta-te.

O que é para fazer a seguir não é um pedido para salvar o planeta. Nem tampouco uma exigência para resolver qualquer situação catastrófica. Se neste momento não tens dinheiro para pagar a conta ao fim do dia, talvez o que é para fazer a seguir é sorrir, beber um copo de água ou desejar um bom dia à pessoa que se encontra à tua frente.

Muitas pessoas tentam eliminar esta dualidade entre o bom e mau, fingindo. Fazem de conta que não há maldade. Não é isso o que pretendo transmitir. Há situações realmente negativas. Acontecem a todos. Mas qualquer situação negativa encontra-se sempre no passado. E visitar o passado com o simples propósito de viver no presente o sofrimento é uma atitude que em nada contribui para o teu bem-estar.  Visita o passado, aprende o que havia para aprender e experimenta manter-te no presente. Nas sensações nos pés ou mãos, nos sons à tua volta, nas cores que te rodeiam. E podes contar uma história da bondade da vida, agora, aqui no presente.

O que é mau para um, é bom para outro. O que está certo para um, está errado para outro.

As boas notícias é que não podes fazer nada em relação ao outro. Isto deixa-te livre para cuidares de ti.
Como seria a tua vida se nunca tivesses aprendido acerca de certo e errado? Se seguisses a tua intuição? Se soubesses que é impossível falhar? Se estivesses consciente que tudo está a funcionar na perfeição? Não na tua visão individual de perfeição, no teu sonho, mas uma perfeição que ultrapassa o teu conhecimento.

Sim, a Inquisição foi má, e não existe agora, aqui, na tua vida. Pais maltratam filhos, sim, mas não agora, aqui, na tua vida. Ditadores maltratam povos, é verdade, mas não aqui, agora, onde tu te encontras.

E em relação a tudo o que consideras mau ou errado ou feio, o que podes fazer? Se há alguma coisa que possas fazer, fá-lo. Mas limitar-te a falar destas coisas não me parece que seja muito amoroso.

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