A nova espiritualidade pode causar mais danos que benefícios


A Nova espiritualidade e todo o movimento de auto-ajuda e revolução espiritual afirma, de maneira directa ou indirecta, que o poder sobre a vida do indivíduo está nele. Desde a “lei da atração” à visualização e PNL, há cada vez mais “estudos científicos” que afirmam que o ser humano é capaz de alterar a sua vida pelo simples poder da sua mente. Outros afirmam que é uma questão de percepção: muda a forma como interpretas o que está a acontecer, e o que está a acontecer mudará. Tentei isto no supermercado, com a percepção de que as folhas de papel higiénico eram dinheiro. A senhora na caixa tinha uma percepção diferente da minha, a cabra.

Vamos por partes. Inicialmente surge uma situação, algures na infância, onde aprendemos que há algo de errado connosco. Nasce assim a vergonha tóxica. A vergonha faz-nos acreditar que há algo de errado connosco, somos produto danificado. Porque fazemos xixi na cama (enurese nocturna para os mais eruditos), ou porque comemos os doces todos da avó, ou porque demos a resposta errada na sala de aula, ou porque rimos no funeral da tia da amiga da vizinha da mãe. Aprendemos que não somos suficientemente bons, ou que não merecemos (esta é uma favorita do novo movimento espiritual “eu sou merecedor de uma boa vida” é o mantra apregoado), ou que não somos capazes. 

Esta crença torna-se inconsciente e irá causar muitos dissabores ao longo da vida.

Há muitos, muitos factores que levam a que cada ser humano esteja onde está. Desde factores económicos (não nascemos todos em famílias da classe alta), a factores sociais (não nascemos todos no bairro culto e educado da cidade), até factores neurobiológicos (a forma como criámos conexões neuronais nos primeiros anos de vida). 

Todos temos e tivemos oportunidades diferentes. Todos interpretamos a vida de maneira diferente. 

Por volta dos 3 ou 4 anos os nossos pais, inocentemente, iniciam o processo de comparação (“a tua irmã já come sozinha” ou “A Mimi já sabe contar até 10 e tu não”). Depois somos nós que damos continuidade a este processo. Comparamo-nos com amigos que têm roupas de marca, com a amiga cujo marido é muito mais carinhoso, com o chefe que ganha muito mais que nós. A comparação costuma andar de mãos dadas com a responsabilidade.

Tiveste negativa no teste de matemática e só tu és o responsável (esquecemos que a criança pode não ter aptidão para as contas mas ser genial na dança, por exemplo). A forma como usamos a responsabilidade é muitas vezes tóxica porque invariavelmente implica a culpa: fizeste asneira, basicamente. 

Por mais que um indivíduo atenda workshops dedicados à deusa sagrada, à luz ultra-violeta de cura, ao shamanismo psicadélico ou ao movimento cosmológico invertido (este inventei agora mesmo e acho que é a solução de todos os males da humanidade), enquanto não abordarmos a vergonha, a culpa e os medos, seremos reféns de uma mente inconsciente que apenas tenta manter-nos vivos. 

É-nos incutido medo ou vergonha de falhar, fazer asneira. Criámos uma imagem do pai perfeito, a amante perfeita, os amigos perfeitos, os irmãos perfeitos, o chefe perfeito, e por aí fora. E sempre que a pessoa à nossa frente não tem o comportamento perfeito esperado dela, reagimos. Reagimos a partir de um estado em que há medo ou vergonha numa das suas muitas nuances (culpa, humilhação, frustração, etc.).

É-nos ainda ensinado a ter o controle sobre a nossa vida, seja através da visualização criativa ou da entoação de mantras. Em realidade nem sequer tomamos decisões conscientemente. Podemos sofrer horrores perante a necessidade de tomar uma decisão, mas nos bastidores do nosso cérebro há neurónios a discutir as implicações das nossas escolhas, de acordo com toda a nossa experiência de vida. Um exemplo simples. Uma criança que passou pela experiência de abandono na infância irá ter muita dificuldade em abandonar um emprego ou relação que lhe são desfavoráveis. Ou então, não se permitirá entregar-se a uma relação íntima para evitar o futuro abandono. Isto é um exemplo, não significa que é assim para todos. Cada um de nós lida com a vida de acordo com o que o nosso cérebro ainda imaturo foi aprendendo.

Não há escolhas certas ou erradas pelo simples facto que é impossível saber qual o resultado definitivo de uma decisão. Podemos fazer previsões, ter uma ideia, mas nunca saber com precisão qual o resultado final de uma escolha. 

A menos que uma pessoa sofra de graves perturbações mentais, ninguém acorda um dia a calcular como causar danos a si mesmo ou aos outros. Muitas vezes podemos causar danos a outros simplesmente porque estamos unicamente a pensar em nós (o caso da infidelidade, roubo, abuso físico ou psicológico). Isto não significa que não deve haver consequências para actos que atentem contra a integridade de outros.

O primeiro passo para efectivamente ter um pouco de controle sobre a nossa vida é a meditação activa. O parar, observar as sensações no corpo sem colocar rótulos, permanecer num estado de curiosidade e fascínio, a observar as sensações. E quando surge um desconforto perguntarmo-nos “o que significa para mim este desconforto?”

Estas pausas para observar o que se passa dentro permite-nos lidar de maneira mais eficiente com o que acontece lá fora. Em vez de cair no erro da “aceitação” e “perdão” e “ser invencível”, começar por assumir a nossa vulnerabilidade, a nossa incapacidade de lidar com os outros da maneira mais correcta, a nossa insustentável leveza do ser (MIlan Kundera). 

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