segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

A nova espiritualidade pode causar mais danos que benefícios


A Nova espiritualidade e todo o movimento de auto-ajuda e revolução espiritual afirma, de maneira directa ou indirecta, que o poder sobre a vida do indivíduo está nele. Desde a “lei da atração” à visualização e PNL, há cada vez mais “estudos científicos” que afirmam que o ser humano é capaz de alterar a sua vida pelo simples poder da sua mente. Outros afirmam que é uma questão de percepção: muda a forma como interpretas o que está a acontecer, e o que está a acontecer mudará. Tentei isto no supermercado, com a percepção de que as folhas de papel higiénico eram dinheiro. A senhora na caixa tinha uma percepção diferente da minha, a cabra.

Vamos por partes. Inicialmente surge uma situação, algures na infância, onde aprendemos que há algo de errado connosco. Nasce assim a vergonha tóxica. A vergonha faz-nos acreditar que há algo de errado connosco, somos produto danificado. Porque fazemos xixi na cama (enurese nocturna para os mais eruditos), ou porque comemos os doces todos da avó, ou porque demos a resposta errada na sala de aula, ou porque rimos no funeral da tia da amiga da vizinha da mãe. Aprendemos que não somos suficientemente bons, ou que não merecemos (esta é uma favorita do novo movimento espiritual “eu sou merecedor de uma boa vida” é o mantra apregoado), ou que não somos capazes. 

Esta crença torna-se inconsciente e irá causar muitos dissabores ao longo da vida.

Há muitos, muitos factores que levam a que cada ser humano esteja onde está. Desde factores económicos (não nascemos todos em famílias da classe alta), a factores sociais (não nascemos todos no bairro culto e educado da cidade), até factores neurobiológicos (a forma como criámos conexões neuronais nos primeiros anos de vida). 

Todos temos e tivemos oportunidades diferentes. Todos interpretamos a vida de maneira diferente. 

Por volta dos 3 ou 4 anos os nossos pais, inocentemente, iniciam o processo de comparação (“a tua irmã já come sozinha” ou “A Mimi já sabe contar até 10 e tu não”). Depois somos nós que damos continuidade a este processo. Comparamo-nos com amigos que têm roupas de marca, com a amiga cujo marido é muito mais carinhoso, com o chefe que ganha muito mais que nós. A comparação costuma andar de mãos dadas com a responsabilidade.

Tiveste negativa no teste de matemática e só tu és o responsável (esquecemos que a criança pode não ter aptidão para as contas mas ser genial na dança, por exemplo). A forma como usamos a responsabilidade é muitas vezes tóxica porque invariavelmente implica a culpa: fizeste asneira, basicamente. 

Por mais que um indivíduo atenda workshops dedicados à deusa sagrada, à luz ultra-violeta de cura, ao shamanismo psicadélico ou ao movimento cosmológico invertido (este inventei agora mesmo e acho que é a solução de todos os males da humanidade), enquanto não abordarmos a vergonha, a culpa e os medos, seremos reféns de uma mente inconsciente que apenas tenta manter-nos vivos. 

É-nos incutido medo ou vergonha de falhar, fazer asneira. Criámos uma imagem do pai perfeito, a amante perfeita, os amigos perfeitos, os irmãos perfeitos, o chefe perfeito, e por aí fora. E sempre que a pessoa à nossa frente não tem o comportamento perfeito esperado dela, reagimos. Reagimos a partir de um estado em que há medo ou vergonha numa das suas muitas nuances (culpa, humilhação, frustração, etc.).

É-nos ainda ensinado a ter o controle sobre a nossa vida, seja através da visualização criativa ou da entoação de mantras. Em realidade nem sequer tomamos decisões conscientemente. Podemos sofrer horrores perante a necessidade de tomar uma decisão, mas nos bastidores do nosso cérebro há neurónios a discutir as implicações das nossas escolhas, de acordo com toda a nossa experiência de vida. Um exemplo simples. Uma criança que passou pela experiência de abandono na infância irá ter muita dificuldade em abandonar um emprego ou relação que lhe são desfavoráveis. Ou então, não se permitirá entregar-se a uma relação íntima para evitar o futuro abandono. Isto é um exemplo, não significa que é assim para todos. Cada um de nós lida com a vida de acordo com o que o nosso cérebro ainda imaturo foi aprendendo.

Não há escolhas certas ou erradas pelo simples facto que é impossível saber qual o resultado definitivo de uma decisão. Podemos fazer previsões, ter uma ideia, mas nunca saber com precisão qual o resultado final de uma escolha. 

A menos que uma pessoa sofra de graves perturbações mentais, ninguém acorda um dia a calcular como causar danos a si mesmo ou aos outros. Muitas vezes podemos causar danos a outros simplesmente porque estamos unicamente a pensar em nós (o caso da infidelidade, roubo, abuso físico ou psicológico). Isto não significa que não deve haver consequências para actos que atentem contra a integridade de outros.

O primeiro passo para efectivamente ter um pouco de controle sobre a nossa vida é a meditação activa. O parar, observar as sensações no corpo sem colocar rótulos, permanecer num estado de curiosidade e fascínio, a observar as sensações. E quando surge um desconforto perguntarmo-nos “o que significa para mim este desconforto?”

Estas pausas para observar o que se passa dentro permite-nos lidar de maneira mais eficiente com o que acontece lá fora. Em vez de cair no erro da “aceitação” e “perdão” e “ser invencível”, começar por assumir a nossa vulnerabilidade, a nossa incapacidade de lidar com os outros da maneira mais correcta, a nossa insustentável leveza do ser (MIlan Kundera). 

domingo, 13 de outubro de 2019

A importância das emoções negativas


O corpo humano possui mecanismos para se manter vivo. Todos estes mecanismos são importantes. Por exemplo, a insulina e o glucagon. Um excesso ou deficiência de açúcar no sangue provoca danos graves no corpo, levando eventualmente à morte. Para evitar que isto aconteça o corpo (pâncreas) produz insulina sempre que os níveis de açúcar aumentam (informa muitas das células para consumirem mais açúcar e dá ordens ao fígado para armazenar qualquer excesso). Por outro lado, se acontecer uma deficiência de açúcar, o pâncreas liberta glucagon, o qual informa o fígado que está na hora de libertar algum do stock de açúcar armazenado. 

O mesmo acontece com as emoções. São um mecanismo essencial ao bom funcionamento do indivíduo enquanto parte de uma sociedade. Cada emoção tem um efeito sobre determinados órgãos. Por exemplo o medo, a ansiedade, a culpa. Estas emoções servem para que a pessoa tenha um comportamento que a mantenha viva enquanto ser humano e enquanto parte de um grupo. As emoções são uma herança dos nossos antepassados. A culpa era fundamental para o indivíduo pertencer ao grupo. Se não fosse caçar com a tribo, o sentimento de culpa levá-lo-ia a sentir-se mal e a esforçar-se da próxima vez, caso contrário poderia ser excluído da tribo e a sua sobrevivência ficaria em causa. Este sentimento conduz à produção de neuropeptídeos que por sua vez afectarão determinados órgãos. 

As emoções são a linguagem primordial que nos levam a desejar fazer parte de um grupo. A sentirmos uma conexão com os outros, ou a sentir uma desconexão.

Assim como seria idiotice impedir o pâncreas de produzir insulina quando esta é necessária, impedir que uma emoção seja vivida ou tentar eliminá-la tem um efeito negativo. Interromper uma emoção de se viver na totalidade causa danos a todos os níveis, desde o físico ao emocional e mental.

Não temos que compreender o processo fisiológico de uma emoção para que esta se viva na sua totalidade. E também não temos que atacar os outros quando a emoção é tão avassaladora que sentimos estar a morrer.

Tomemos a raiva, uma emoção de sobrevivência pura. Esta emoção era essencial quando vivíamos em cavernas. A raiva leva à produção de cortisol e adrenalina, entre outros. O seu efeito faz-se sentir desde os rins até aos olhos. A raiva é o que nos leva a lutar até à morte. Nos dias de hoje são muito raras as situações em que precisamos de lutar até à morte. Mas se nos lembrarmos do motivo porque a raiva surge, saberemos viver esta emoção na sua totalidade. A raiva é a emoção que diz “pára imediatamente tudo o que estás a fazer e muda de direcção. Faz qualquer coisa pela tua vida, agora”. Não é para amanhã, nem para daqui a dois meses. É agora. Muda. Já. Pode ser mudar a atitude, mudar de lugar, mudar de relação. Ouvir e permitir que esta emoção se viva significa gritar, dar murros no ar, correr. É uma emoção que liberta muita energia no corpo. Impedir que se viva na totalidade levará a problemas nos rins, fígado, olhos, ouvidos, coração, estômago, intestinos… E no entanto somos ensinados a abafar a raiva. É mal vista. Significa ser-se mal-educado. A raiva abafada levará a comportamentos destrutivos. Iremos atacar verbal ou fisicamente aqueles que nos são próximos. Iremos fazer coisas das quais nos arrependeremos mais tarde.

A emoção que mais danos causa quando não assumida e vivida é a vergonha. Ensinam-nos muito cedo a “ter vergonha”. Há uma diferença entre a vergonha e a culpa. Enquanto a culpa é um sentimento que nos indica que fizemos algo de errado, algo que podemos corrigir, a vergonha é o sentimento que nos mostra haver algo de errado connosco, que somos produto danificado. A culpa diz-nos que falar mal dos outros é errado. A vergonha diz-nos que somos pessoas más, ou que não somos suficientemente boas para ser aceites no grupo. A vergonha leva-nos a esconder a nossa humanidade, a atacar qualquer pessoa que toque nas nossas feridas emocionais, e a desvalorizar  o sofrimento, nosso ou dos outros. Observa, por exemplo, o que acontece quando alguém que nos é querido se sente triste, deprimido ou chora. Tentamos que mude, que deixe de chorar. O seu comportamento envergonha-nos porque nos faz sentir impotentes, o que é uma vergonha. Ou seja, queremos interromper o processo emocional de alguém que nos é querido, porque permitir isso leva a que se inicie em nós um processo tóxico de vergonha. Aliás, nós próprios temos vergonha da nossa tristeza ou da necessidade de chorar, considerando isto como um sinal de fraqueza, fragilidade, impotência. (A propósito, são estas qualidades que nos tornam humanos). 

O processo de pacificação com emoções rotuladas de negativas começa por permitir que se vivam na sua totalidade (muitos de nós já nem sabemos como se faz isso). Se é um amigo, mãe, ou filho que está a passar por um processo doloroso, ficar ao seu lado e simplesmente dizer “eu estou aqui” é a melhor resposta para respeitar o processo em si. 

Nos retiros do Processo da Sombra, os exercícios em que nos permitimos sentir na totalidade estas emoções, os sentimentos de não sermos suficientemente bons, de acreditar que há algo de errado connosco, são sempre os mais intensos. E também os mais libertadores. 

terça-feira, 18 de junho de 2019

Cérebro 2.0


O nosso cérebro, de uma maneira geral, é o responsável por manter-nos vivos. A sua única função é evitar a morte e o sofrimento. Para cumprir isto encarrega-se dos eventos em todo o corpo e vida. Desde o ar que entra nos pulmões até aquela sobremesa extra que sabíamos que não era para comer.

Há toda uma melodia a ser tocada no nosso corpo cujas notas são os neurotransmissores. Demasiada adrenalina e o coração dispara. Pouca ocitocina e sentimo-nos uns desgraçados. Muita luz solar e ficamos activos, pouca água e apodera-se de nós uma ansiedade. 

Mas todas estas emoções são o cérebro a fazer o seu trabalho para nos manter vivos. Elementos externos, como a luz, os alimentos, os relacionamentos e trabalho, provocam a produção ou inibição de químicos e/ou  sinais eléctricos que por sua vez resultam em estados emocionais.

E é aqui que encontramos muitos dos nossos dramas de hoje. O cérebro continuamente processa informação exterior para saber o que fazer. E o que é para fazer é simples: manter o corpinho vivo. Até há poucos anos a grande maioria das pessoas ocupava a mente pensante com problemas a sério. Organizar a casa, trabalhar para ter comida e roupa, estudar para ter casa, ser simpático para poder procriar.

Nos nossos dias esses problemas praticamente não existem nos países ocidentais. Poucas pessoas têm que efectivamente preocupar-se com a próxima refeição (mesmo um sem-abrigo tem organizações a fornecer refeições gratuitamente). Mas a mente não sabe ficar sossegada. Obedece a uma ordem ancestral implantada no nosso cérebro reptiliano: mantém-te vivo. 

Obedecer a esta ordem implica procurar problemas para resolver. Porque resolver problemas é o que o cérebro gosta de fazer, ou pelo menos está programado para isso. 
E que problemas temos hoje que impeçam estarmos vivos? Zero! Nada! Rien! Zilch! 

Então, a mente, que não sossega, inventa problemas. Preciso de um telemóvel novo com ecrã  de 20 polegadas, som Dolby 7.0, e reconhecimento genital. Preciso de ir de férias para aquela ilha a sul da Nova Zelândia. Tenho que convencer os colegas de trabalho que o meu sentido de moda é o melhor. Se não conseguir parceiro antes dos 16 anos é porque há algo de errado comigo. Se a minha parceira terminar a relação não saberei o que fazer à minha vida. Há crianças a morrer à fome num país qualquer ali ao lado daquele país qualquer. O plástico está a destruir o planeta e tenho que que me revoltar com esta sociedade.

Transformar estas situações em questões de sobrevivência é estúpido. E é o que a mente faz, na sua loucura. 

Pouco a pouco estamos a destruir o ser humano animal, o que procura comida, refugio, sexo, e a querer criar um ser humano ideal, perfeito, sempre feliz. Isto é a causa de muito mal-estar emocional. No fundo, se pararmos, sabemos que aquilo que nos atormenta muitas vezes não tem qualquer implicação real na nossa vida enquanto seres vivos. 

Pessoas entram e saem das nossas vidas. É natural. Coisas entram e saem das nossas vidas. E também é natural. Querer que a vida seja como nós queremos é um movimento fútil de pura arrogância. A vida está-se nas tintas para os nossos quereres. Vive-se. Ponto final. 

Então, como podemos nós parar esta tendência para a loucura da nossa mente? 

Abrandando. Mais devagar. Dedicarmo-nos ao que realmente é importante. O que comemos, com quem estamos, o que fazemos. Brincar. Trabalhar. Socializar. Sem expectativas. 
Aprender a sermos directos com os outros, em vez de tentar subtilezas e indirectas. Dizer sim quando é sim que queremos dizer. E não, quando queremos dizer não. Não esperar que os outros adivinhem o que vai nas nossas cabecinhas loucas. Aprender com as situações difíceis (são muito, muito poucas, mesmo!). 

O parceiro que sai da relação não significa o fim da vida. O fémur fracturado não significa que vai haver pestilência ou fome a devastar o planeta. O trânsito parado não significa a queda de um asteróide a aniquilar a vida tal como a conhecemos. 

Alterar os processos dementes da mente é relativamente simples. Em cada situação aprende algo, descobre a bondade da vida, ou questiona-te sobre o significado que estás a atribuir à situação. Em vez de querer controlar a vida (iremos falhar), experimenta permitir que a vida se viva em ti. Dá as boas-vindas a qualquer emoção e permite que se viva em ti completamente. Não te agarres ao pesadelo de querer destruir o que está presente. Nada é para sempre, nada é constante. Tudo muda. Incluindo a tristeza, mágoa ou euforia. A vida é movimento. E o cérebro sabe-o.

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Maturidade emocional


Como adultos experienciamos a vida da mesma forma que uma criança: o que está fora de nós afecta o que sentimos dentro de nós.

Uma criança depende dos adultos (não necessariamente um pai ou mãe) para viver. Vai buscar aos adultos uma certa segurança, apoio, nutrição, afecto. Isto é natural e é suposto ser assim.

A adolescência é o período de aprendizagem intensivo em que supostamente aprenderíamos a inverter este processo e desenvolveríamos ferramentas para  cuidar da nossa vida, ser os autores da nossa experiência. Muitas tribos têm os chamados rituais de passagem, os quais têm lugar entre os doze e dezoito anos. Não é por acaso que o nosso corpo, do ponto de vista biológico, está preparado para a reprodução por volta dos doze anos. Há uma maturidade biológica que se atinge, mas a maturidade emocional parece não existir.

Com a tendência cada vez maior de os progenitores cuidarem dos problemas dos filhos numa idade em que não é psicologicamente saudável, as criaturas adolescentes não ganham ferramentas para lidar com os desafios de estar vivo. Não aprendem a lidar com a rejeição, por exemplo. Buscam continuamente nos outros o seu bem-estar emocional, e tornam-se muitas vezes incapazes de assumir compromissos.

Como pode um adulto ensinar um adolescente que este não depende emocionalmente de outros, quando o próprio adulto é carente de atenção e validação?

O nosso cérebro continua programado para acreditar que a nossa vida depende literalmente das relações que criamos. Embora haja alguma verdade nisto, não dependemos emocionalmente dos outros para ter paz ou estar bem.

Na busca das experiências emocionais que nos são prometidas nos relacionamentos esquecemos que apenas nós somos responsáveis pelo nosso bem-estar.

Cuidar do meu bem-estar emocional permite-me estar presente para mim e, por conseguinte, para os outros.

Adultos criam ligações emocionais através do elogio, gratidão, compaixão, partilha de momentos. E desconectam-se emocionalmente através da crítica, do apontar defeitos, do estar insatisfeito e acusar os outros desta insatisfação.

E enquanto estivermos desconectados de nós mesmos, iremos desconectar-nos dos que nos rodeiam.

Como podemos cuidar do nosso bem-estar emocional? Dando-nos o que exigimos dos outros. Se o que queremos é um jantar romântico, um filme no sofá com pipocas, um passeio na natureza ou roupas bonitas, então para quê esperar que outros nos ofereçam isto se o podemos oferecer a nós mesmos? E se a ideia de um jantar íntimo sozinho é algo que não te apraz, então compreenderás que outros poderão também não gostar da tua companhia. A companhia que nos fazemos quando estamos sós será a companhia que iremos ter quando estivermos com outros.

Observa a relação que crias com filhos, amigos, amantes. Estás mais ocupado em tentar corrigir o outro, em mudá-lo, ou optas por ver o que há de bom nesta pessoa? Iremos fazer aos outros o que fazemos connosco. Quanto mais julgo negativamente a pessoa que sou, mais irei julgar depreciativamente aqueles que me rodeiam. Por outras palavras, quando me trato mal a mim, irei tratar-te mal a ti. E quando me trato bem a mim, irei tratar-te bem também.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Dança com a culpa


“Haverá sempre agressores enquanto eu for vítima.”
Esta dança só possui dois passos: ora culpo-te a ti, ora culpo-me a mim.
Independentemente do passo que estejas a dar, o sentimento nunca é agradável.
A culpa é um sentimento assente completamente na mentira. E a mentira é simples: na altura em que tu, ou outro, tiveste determinado comportamento deverias ter agido de maneira diferente. É mentira porque agiste como agiste, tendo em conta aquilo em que estavas a acreditar na altura.
Um exemplo simples. Tu sabes que roubar é errado, e tirar aquilo que não te pertence é errado. E um dia pegas na caneta do colega, que até é gira, e depois de a usar mete-la ao bolso. No preciso momento em que guardaste a caneta no bolso do teu casaco tinhas que obrigatoriamente estar a acreditar que precisavas daquela caneta, ou que o colega não precisava dela, ou que não tinhas possibilidade de comprar uma caneta igual e aquela fazia-te falta. Ou simplesmente acreditaste que a caneta deveria ser tua. Naquele preciso momento acreditavas numa mentira, e agiste de acordo com a mentira em que estavas a acreditar.
Outro exemplo. A mãe agride-te com a vassoura. No momento em que a mãe te bate está a acreditar que agredir é a forma de educar, ou acredita que a vergonha que ela sente por qualquer coisa que tu tenhas feito ou dito só pode ser eliminada agredindo-te. Ela irá agredir-te porque está a acreditar que a agressão é a solução para o que ela está a sentir. Não é, e ela não sabe que não é.
Observação: Fica atento da próxima vez que alguém tiver um comportamento que reprovas. Consegues ver que o sentimento em ti é causado pelo que tu acreditas nesse momento e que nada tem que ver com a outra pessoa? Tu és a causa do que tu sentes.
O teu namorado envolve-se com outra mulher. No momento em que se envolve está a acreditar que gosta mais da mulher à frente dele do que de ti. Ou acredita que aquela mulher lhe poderá dar o que tu não lhe dás. Ou acredita que está farto de ti e aquela mulher poderá aliviar o sentimento negativo que alimenta em relação a ti. Não alivia nem melhora nada, mas ele acredita nisto.
Tu ficas furibunda com o marido e dás-lhe uma bofetada. Nesse preciso momento estás a acreditar que o sentimento de revolta em ti é causado pelo marido (não é). E tens que o atacar porque acreditas que isso te irá deixar a sentir-te melhor (não deixa).
Isto não significa que as nossas acções não têm consequências. Têm! Há policias e juízes para tratar dessas questões (e a vizinha do lado, que embora menos legal, é mais poderosa). Entretanto tu só podes lidar contigo. Isto é bom de saber. Nunca irás saber porque motivo os outros agiram como agiram. Nunca poderás estar dentro das suas cabeças para saber em que acreditavam quando agiram como agiram. Mas podes tratar de ti.
Este jogo da culpa leva-nos a campos de sofrimento sem saída possível. Quando acreditas que outro é o culpado por algo que aconteceu na tua vida irás sentir qualquer coisa entre a mágoa e frustração até à raiva e ódio. E depois culpas o outro pelo que sentes. E ao culpá-lo irás perpetuar estes sentimentos, estas emoções tóxicas. Compreendes o processo quando culpabilizas outro?
Talvez estejas a viver a história da namorada que te foi infiel, e o que podes fazer com essa informação? Culpá-la pelos teus sentimentos negativos não me parece ser uma solução para a paz na tua vida. Mas podes aprender que não é com essa namorada que queres estar. Talvez a tua história seja a do pai que te maltratou na infância, e agora podes continuar a culpá-lo ou podes aprender que a violência não é a solução.
Culpar os outros pelos nossos sentimentos é a saída fácil. E é também a entrada fácil num mundo de sofrimento.
O pai bateu-te há trinta anos atrás e na altura tu eras inocente e o pai foi o culpado pela sova que levaste. E com esta história de culpa irás sentir algo de menos agradável. E depois irás sentir-te pior porque no teu intimo sabes que o que sentes não é bom para ti. E culpabilizas o pai pelo que sentes. E regressas ao início do sofrimento.
É impossível ser-se violento excepto se acreditarmos numa mentira. A mentira é a causa da violência.
E lembra-te que nada podes fazer em relação ao comportamento que outros tiveram para contigo. É de ti que se trata, é do teu bem-estar emocional.
As pessoas são inocentes. Ver as pessoas de outra forma não resolve nada. São inocentes porque num estado de confusão mental acreditam que a violência funciona. A mentira funciona. A vergonha funciona. E o medo funciona.
Poderias tu parar com a violência que infliges a ti mesmo? Porque se não és capaz de o fazer não podes pedir que outros o façam por ti. Acorda da ilusão que a tua vida será maravilhosa quando os outros mudarem. Ninguém muda até tu seres o exemplo a seguir.
E não tens que te sentir culpado. És tão inocente como nós.
Aprende a criar um espaço entre a situação que te causa sofrimento e a tua resposta à mesma. Por vezes terás mesmo que te ausentar fisicamente. Se a esposa grita contigo, sai de casa, respira fundo e tenta compreender a situação sem a necessidade de teres razão. Só quando estiveres mais calmo é que é aconselhável regressar para junto da esposa que grita. Compreende-a. Compreende porque grita. Afinal é o que tu queres, que te compreendam. Mostra que é fácil compreender-te, compreendendo os outros.
A culpa está muito associada ao conceito de responsabilidade. Este tema é abordado em pormenor mais adiante. Entretanto, pondera isto: quando acreditas que a violência resolve uma situação de conflito, consegues manter-te sereno?
Muitas vezes pais maltratam os filhos exactamente porque acreditam que são os responsáveis pelo comportamento do filho. E não são, não podem ser. Os pais só podem ser o exemplo. E os filhos olham para o exemplo e decidem segui-lo, ou não.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

As gavetas das experiências





“Não querer o que está a acontecer é dar mais poder ao que está a acontecer.”

Desde muito cedo ensinam-nos a catalogar todas as experiências da vida. Somos bons a aprender a fazer isto. E no final todas as experiências se resumem a seis rótulos. Boas e más, certas e erradas, bonitas e feias.

É assim que nos limitamos e vivemos uma vida a lutar. Lutamos para ter o bom, certo e bonito. Lutamos para não ter o mau, errado e feio. Um verdadeiro inferno, Porque estamos sempre a lutar.

Observação: perante uma situação que consideres errada ou má pergunta-te “o que há de bom para mim aqui?” – deixa que a resposta surja, sem forçar.

Enquanto vivermos a classificar as situações desta forma é impossível ter paz. Olhamos para eventos do passado e dizemos que foram maus. E sofremos. Imaginamos algo no futuro que pode correr mal. E sofremos. Ou recordamos eventos do passado que classificamos como bons e sofremos porque já não estão aqui.

Estar presente no momento, sem estes rótulos, é muito difícil. Porque sem estes rótulos o ego não existe enquanto ditador da vida. O ego classifica, descreve, interpreta. É útil. O drama acontece quando tudo é experienciado a partir deste ego, desta parte de mim que se sente incompleta e necessitada.

Isto não é bom nem mau. Pode inclusive ser útil.

O momento presente não é aquilo que acontece à tua volta. O momento presente inclui-te a ti. Neste momento observa as sensações nos teus pés, nas mãos, os sons à tua volta, as cores, os movimentos. Sem classificar como bom ou mau. Se conseguires ficar neste estado algum tempo começarás a ter um vislumbre da vida tal como se apresenta. Poderás notar breves momentos sem pensamento. Talvez seja mais fácil se focares a tua atenção na respiração, no ar que entra e sai.

Para sair deste ciclo podes começar a procurar algo que funcione a teu favor em cada situação dolorosa do passado. A pergunta que te podes fazer é esta: de que forma beneficiei devido a esta situação? Ou "O que poderia ter aprendido?"

Quando tinha quinze anos fugi de casa. Vivi na rua e a dormir em bancos de jardim. De que forma me foi benéfica esta experiência? Aprendi que preciso de muito pouco para viver. Aprendi ainda que a vida toma conta de mim quando eu não o faço. E anos mais tarde, em conversa com um adolescente que fugia de casa pude ser-lhe útil. Falei-lhe da minha experiência, que parece ter sido suficiente para ele mudar de ideia e regressar a casa. Não lhe disse que estava errado ou que era mau o que ele estava a fazer. Contei-lhe a minha aventura. Isso foi tudo.

Quando morreu uma muito querida amiga beneficiei da presença no momento. Descobri ainda que as pessoas não morrem, apenas os corpos. Esta querida amiga continua sempre viva onde sempre viveu: na minha mente, como uma sucessão de histórias.

Quais os benefícios de passar por situações de privação, de violência física ou verbal, de escassez? Poderia aprender que nem sequer este corpo é meu. Aprender que todo o sofrimento é baseado numa história acerca do que já passou, ou que ainda está para acontecer. Mesmo a dor física é uma experiência que está sempre a passar. Sempre no passado. Consegues sentir a dor de há três segundos atrás?

Consegues ver beleza numa rua com lixo? A perfeição com que o lixo se espalha pela rua? E se te incomoda, com certeza que podes agarrar numa vassoura e começar a varrer a rua. Ninguém te irá impedir de o fazer.

Experimentação: tenta colocar-te no lugar da pessoa que te causa stress. Como será viver a vida dessa pessoa? Que situações terá para ter o comportamento que tem?
Decidimos que há pessoas boas e más. E só queremos a companhia das boas, obviamente. Até ao dia em que as pessoas boas façam ou digam algo que consideramos mau. E assim passamos uma vida a evitar os outros. E se as pessoas más fossem apenas pessoas confusas? E se alguém te ameaçar, claro que é muito mais saudável para ti afastar-te.

Este método de rotular a vida impede-nos de experienciar o amor por todos. Dizemos que amamos outro, e em realidade apenas gostamos do outro porque o consideramos bom. O dia que o outro se comportar de uma maneira que consideramos má o amor sai porta fora. Não conseguimos um espaço para a compaixão, limitamo-nos a acusar o outro por ser mau, tal como os adultos à nossa volta nos fizeram quando éramos crianças.

Assim nasce a violência. Por detrás das histórias de violência doméstica há uma pessoa incapaz de dizer não. Uma pessoa com medo da solidão ou do que os outros possam pensar. Porque tomar uma atitude assertiva pode ser mau ou errado ou feio.

A violência é um estado de confusão total. Não é bom nem mau. É o que é. E ensinamos os nossos filhos este estado de confusão que gera a violência. Amuamos, gritamos, castigamos, ameaçamos. Fomentadores do medo, vergonha e culpa é o que somos muitas vezes.

E não há pais bons ou maus. Há os pais que há. Se acreditas que os teus pais foram maus, poderias parar de te magoar e aprender o que tinham para te ensinar. Talvez a lição mais importante que um progenitor violento pode ensinar é precisamente isto: a violência não funciona. Poderias parar a violência de ti para ti? Como te violentas no dia-a-dia? Como te deitas abaixo? Quantas vezes fazes algo apenas para agradar? Muita violência. E como tratas tu o pai ou mãe que foram violentos? Consegues mostrar-lhes que a paz funciona melhor, ou optas por os acusar de terem sido maus pais?

Continuando com este hábito de rotular a vida. Aquilo que é mau para uma minhoca é muito bom para o pássaro que a come. E aquilo que é mau para o pássaro é muito bom para o gato que o come. E no fim o último a rir é novamente a minhoca que come o gato em decomposição. Um ciclo completo.

Apenas do ponto de vista do individuo, microcósmico, é que a vida pode ser interpretada como boa ou má. Do ponto de vista macrocósmico, a vida simplesmente vive-se. Tudo a acontecer agora. Agora. Agora. E quando interpretas o que está a acontecer agora, o agora já mudou. É sempre uma história do passado.

Podes começar a praticar a inexistência do bom e mau, bonito e feio, certo e errado, a partir de agora. Observa o que acontece e diz a ti mesmo que é ok estar a acontecer o que está a acontecer. Mesmo que não gostes do que está a acontecer, é ok não gostar do que está a acontecer. E depois de afirmares que é ok, pergunta-te o que é para fazer a seguir. Mesmo que o que esteja a acontecer agora seja alguém dar-te uma bofetada, é ok. E o que é para fazer a seguir é simples: deixa essa pessoa em paz, afasta-te.

O que é para fazer a seguir não é um pedido para salvar o planeta. Nem tampouco uma exigência para resolver qualquer situação catastrófica. Se neste momento não tens dinheiro para pagar a conta ao fim do dia, talvez o que é para fazer a seguir é sorrir, beber um copo de água ou desejar um bom dia à pessoa que se encontra à tua frente.

Muitas pessoas tentam eliminar esta dualidade entre o bom e mau, fingindo. Fazem de conta que não há maldade. Não é isso o que pretendo transmitir. Há situações realmente negativas. Acontecem a todos. Mas qualquer situação negativa encontra-se sempre no passado. E visitar o passado com o simples propósito de viver no presente o sofrimento é uma atitude que em nada contribui para o teu bem-estar.  Visita o passado, aprende o que havia para aprender e experimenta manter-te no presente. Nas sensações nos pés ou mãos, nos sons à tua volta, nas cores que te rodeiam. E podes contar uma história da bondade da vida, agora, aqui no presente.

O que é mau para um, é bom para outro. O que está certo para um, está errado para outro.

As boas notícias é que não podes fazer nada em relação ao outro. Isto deixa-te livre para cuidares de ti.
Como seria a tua vida se nunca tivesses aprendido acerca de certo e errado? Se seguisses a tua intuição? Se soubesses que é impossível falhar? Se estivesses consciente que tudo está a funcionar na perfeição? Não na tua visão individual de perfeição, no teu sonho, mas uma perfeição que ultrapassa o teu conhecimento.

Sim, a Inquisição foi má, e não existe agora, aqui, na tua vida. Pais maltratam filhos, sim, mas não agora, aqui, na tua vida. Ditadores maltratam povos, é verdade, mas não aqui, agora, onde tu te encontras.

E em relação a tudo o que consideras mau ou errado ou feio, o que podes fazer? Se há alguma coisa que possas fazer, fá-lo. Mas limitar-te a falar destas coisas não me parece que seja muito amoroso.

Ciência e Pseudociência

As redes sociais trouxeram consigo alguns benefícios, sobretudo no que toca a partilha de informação. Contudo esta partilha de informação si...